
27 Jan O Processo de Insolvência e o Direito a Ser Esquecido
Em 2024, celebraram-se vinte anos desde a aprovação do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e, consequentemente, da introdução, no nosso ordenamento jurídico, do instituto da Exoneração do Passivo Restante (EPR).
Este instituto foi evoluindo ao longo dos anos, sendo que a redução do seu período de cinco para três anos foi, sem dúvida, a alteração mais significativa.
Contudo, existe outro fenómeno que merece destaque e sobre o qual versa este artigo: o do “direito ao apagamento do nome do insolvente e do registo de processos de insolvência da consulta publica”.
De facto, tem-se assistido a um crescente número de pedidos desta natureza por parte de particulares que passaram por um processo de insolvência entretanto encerrado. Estes requerem que o processo, ou pelo menos o respectivo registo no Portal Citius, seja eliminado da internet.
Este pedido prende-se, pelo menos segundo o que os “ex-insolventes” nos transmitem quando nos contactam ou expõem nos seus requerimentos, com o facto de os bancos terem acesso a essa informação e a utilizarem como fundamento para indeferirem pedidos de crédito bancário.
O que mais nos surpreende, na verdade, é o relato de que são os próprios gestores bancários a informar os requerentes, transmitindo-lhes qualquer coisa como: “Olhe, o banco tem agora indicação para pesquisar sempre, no Portal Citius, pelo número de contribuinte de quem solicita crédito. No seu caso, consta um processo de insolvência que, mesmo estando encerrado, impede o acesso ao crédito. Ligue ao seu Administrador Judicial (AJ) e peça-lhe para apagar isto!”
Comecemos desde logo por esta última parte: como é óbvio, o AJ não tem competência para eliminar qualquer registo no Portal Citius. Mas, mesmo que tivesse, não lhe caberia decidir ou actuar nesta matéria, uma vez que as suas funções cessaram com o encerramento do processo, o qual ocorre, por regra, com a concessão da exoneração do passivo restante.
Todavia, pelo menos nos casos que nos chegaram, sempre que a sentença que decreta a exoneração do passivo restante foi proferida há mais de um ano, os tribunais têm deferido os pedidos e ordenado a eliminação dos registos de acesso público.
Enquadramento Jurídico
De forma sucinta, quanto ao registo e publicidade das decisões, os seguintes normativos são os mais frequentemente referidos nas decisões analisadas:
- O Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, prevê o direito ao apagamento dos dados (direito a ser esquecido), nomeadamente quando estes deixem de ser necessários para a finalidade que motivou a sua recolha e tratamento (artigo 17.º do Regulamento).
- A Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto (RGPD) estabelece que:
“O direito ao apagamento de dados pessoais publicados em jornal oficial tem natureza excecional e só se pode concretizar nas condições previstas no artigo 17.º do RGPD, nos casos em que essa seja a única forma de acautelar o direito ao esquecimento e ponderados os demais interesses em presença.” – (artigo 25.º, n.º 4)
- A Lei n.º 34/2009, de 14 de julho, que regula o tratamento de dados no sistema judicial, prevê que a eliminação de dados arquivados electronicamente deve obedecer às normas sobre arquivamento, prazos de conservação administrativa e destruição de processos e documentos judiciais (artigo 40.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2009, de 14 de julho).
- A Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, determina no seu artigo 142.º, n.º 1, alínea a), que os processos cíveis se consideram findos, para efeitos de arquivo, decorridos três meses após o trânsito em julgado da decisão final. O n.º 2 do mesmo artigo estipula que os processos são arquivados no tribunal após fiscalização do Ministério Público e correição do juiz ou magistrado competente.
Direito ao Apagamento: Duas Situações Distintas
Com base na legislação aplicável, os pedidos podem ser enquadrados em duas categorias distintas:
1) Pedido de destruição ou eliminação do processo findo
Este pedido é, regra geral, recusado, com fundamento em:
- A informação de que um determinado processo de insolvência esteve pendente e de que o requerente beneficiou da exoneração do passivo restante pode ser essencial, nomeadamente para credores ou para o próprio tribunal em futuros processos de insolvência (artigo 238.º, n.º 1, alínea c), do CIRE).
- Uma vez arquivado um processo, salvo reabertura para efeitos administrativos, a consulta e a prática de actos através do sistema informático Citius são muito limitadas.
- A declaração de insolvência de pessoas singulares está sujeita a registo (Artigo 1.º, n.º 1, alínea l), e artigo 69.º, n.º 1, alínea i), do Código do Registo Civil), sendo que a eliminação desse registo só ocorre, em regra, cinco anos após o encerramento do processo ou do fim do período de fiscalização do plano de insolvência ( Artigo 81.º-A, n.º 1, alínea b), do Código do Registo Civil).
2) Pedido de eliminação da publicidade dos actos de insolvência
Este direito tem sido reconhecido, com fundamento em:
a) Não existir justificação ou interesse na manutenção da publicidade do processo, dado que já decorreu o prazo previsto no artigo 246.º, n.º 2, do CIRE.
b) Apesar de o registo do despacho inicial e do despacho de exoneração do passivo restante dever ser conservado durante dez anos (artigos 238.º, n.º 1, alínea c), e 247.ºdo CIRE), não há razão para que esse registo continue acessível ao público.
Com base nestes argumentos, nos casos em que o processo se encontra encerrado há pelo menos um ano, as decisões têm sido no sentido da eliminação das publicações no Portal Citius, deixando assim de estar acessíveis ao público (é ao IGFEJ – Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça – que compete proceder aos mecanismos necessários para que estes registos deixem de ser públicos).
O Conselho Superior da Magistratura (CSM) também já se pronunciou sobre este tema, dado que o Tribunal Judicial, Juízo de Comércio do Barreiro – Juízo 4, considerou que a entidade responsável pela gestão dos dados processuais nos tribunais é o CSM, pelo que lhes remeteu um pedido por ele recebido. E o CSM foi no mesmo sentido das decisões aqui referidas, deferindo o pedido de eliminação do registo do acesso público (https://csm.org.pt/wp-content/uploads/2024/10/20240424_Anonimizado_Limitacao-da-Conservacao-e-Apagamento-de-Dados-do-Processo-de-Insolvencia-que-Contem-Dados-Pessoais-1.pdf ).
Por outro lado, as decisões de indeferimento deste pedido são normalmente sucintas, baseando-se no facto de não ter ainda decorrido um ano após o trânsito em julgado do despacho final de exoneração do passivo restante.
A Provedora de Justiça, a 15 de novembro de 2024, recomendou à Ministra da Justiça que o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ) adopte práticas adequadas face aos pedidos de ocultação de dados pessoais no âmbito da insolvência (https://www.provedor-jus.pt/documentos/Recomenda%C3%A7%C3%A3o%20n_3_A_2024_IGJEF.pdf.
O IGFEJ tem entendido que os registos só podem ser eliminados ao fim de dez anos, um entendimento que, como vimos, não é acolhido pelos tribunais. Da mesma forma, a Provedora requereu que fosse dada instrução ao IGFEJ para remeter os pedidos recebidos a quem de direito, ou seja, ao Juiz titular do processo.
Conclusão
Em nossa opinião, embora este direito ao esquecimento se baseie no conceito de “fresh start”, trata-se de um mecanismo desnecessário, já que no Portal Citius também se publica tanto o encerramento do processo como o despacho final de exoneração do passivo restante. Além disso, os bancos dispõem (ou deveriam dispor) de mecanismos próprios para acederem a essa informação.
Graziela Lisboa | Vila Nova de Gaia , 27 de Janeiro de 2025